#26 talvez você não deva (e muito menos precise) correr uma maratona - sobre hobbies e performance
o que os esportes me ensinaram nesse 1 ano que comecei a gostar deles foi que eu não preciso ser tão boa assim
para começar, vale mencionar que a onda de ‘cool girl hobbies’ e hobbies que toda ‘hot girl’ deve ter está aí há um tempo. acho que veio de brinde com a tendência a transformar livros em objetos de decoração e adereços para mesas de cabeceira, sempre aparecendo no canto das fotos para dar um quê a mais. na busca incessante por ser mais interessante, o campo do lazer renovou essa promessa. faça cerâmica, pinte seu bobbie goods, leia tais livros. pratique uma atividade física. poste tudo online e garanta seu selo de pessoa descolada. nada contra, já que eu faço isso também. só acho bizarro o discurso de que você precisa fazer tal coisa não porque você gosta, mas para ser mais interessante aos olhos de um outro que você nem sabe quem é.
quase como se existisse um self service de hobbies: você só pode escolher o que está ali - o que está na moda - e ainda tem que fazer bem feito, porque está todo mundo olhando. o que é exatamente o contrário do objetivo em existirem hobbies.
um dos meus sonhos atuais era algum dos meus amigos próximos se interessar bastante pela corrida para fazermos uma prova juntos. parecia uma possibilidade distante até que, magicamente, um dos meus melhores amigos começou voluntariamente a fazer caminhadas longas intercaladas com corridas - e se sentir bem nelas. ele me disse uma coisa interessante sobre se sentir bem correndo porque é você com você, sem sentir que ninguém está te olhando (e julgando). como disse a phoebe, correr é sobre passar pelos outros sem nem ter tempo de perceber o outro ou ser percebida (obs: ela não disse isso, mas é o que eu entendi).
vale dizer em termos de hobbies eu nunca tinha incluído algo novo na minha rotina além da leitura e que eu odiava veementemente qualquer atividade física: fui uma criança que matou todas as aulas de educação física e, adolescente, não caí no conto do crossfit e nem do beach tenis. a lista de atividades físicas que eu evitei porque me deixavam hiper consciente de mim mesma, da minha falta de coordenação, do fato que eu não era boa naquilo é grande. e nessa lista, talvez no top 3, estava a corrida.
correr era uma coisa bem distante para mim. na pandemia, quando podíamos sair na rua respeitando distanciamento, sair para caminhar virou uma terapia. eu caminhei consideravelmente, tentava correr na esteira e lembro que meu um minuto inteiro correndo demorou para sair. o importante é que eu corri o suficiente para ficar viciada na endorfina. fazia caminhadas na época que o strava não era uma regra e só fui entender que pace é o tempo que 1km demora para ser feito ano passado. depois que essas coisinhas começaram a importar, minha relação com correr começou a mudar um pouco.
quando comecei a ser mediana, a acompanhar meu pace no strava, eu comecei a sentir vontade de ser muito boa igual as pessoas que o algoritmo me mostrava. me sentia para trás na minha evolução - que acontece todos os dias, mas parecia menor do que deveria ser. cheguei a esquecer que eu jurava que nunca correria 5km e que se alguém dissesse para meus pais 2 anos atrás que a filha deles pensaria em fazer uma maratona sem ser de livros, eles ririam. vi tantos vídeos de quem faz 5km, faz 10km. quem faz 10km, faz 21km que comecei a acreditar que o problema era eu não conseguir fazer 10km logo depois de fazer 5. parando pra pensar, quem mais lucra com esse tipo de vídeo são os fisioterapeutas.
para quem não se interessa por corrida, é o equivalente a aprender a fazer a textura de areia e em seguida se sentir mal por não conseguir fazer perfeitamente a textura de bolhas de sabão no bobbie goodies. dá vontade de pular uma fase, não dá vontade de curtir o processo e se você erra, você sente uma culpa enorme porque, se é só querer, como eu não consegui?
e de novo, entra a grande questão do poder de influência dos criadores digitais. e a questão do discernimento do consumidor do conteúdo ao fazer a diferenciação entre as possibilidades e prioridades de um influenciador fitness (geralmente um atleta, que tem como trabalho correr/treinar/gravar conteúdo) e ele mesmo (pessoa normal, clt, com outras preocupações). só que eu posso dizer que eu sou uma pessoa com pouco discernimento que não sabe se por no próprio lugar quando eu me sinto mal por ver conteúdos de que falam que ‘basta querer’ para chegar em tal lugar? não. eu sei essas coisas, mas eu me autorizo a ficar com raiva aqui na minha casa.
nos últimos dias, recebi uma onda de conteúdos e comentários julgando o pace dos outros. vídeos de meninas se chamando de ‘corredoras lentas’ com um pace de 6 e pouco. no mundo fitness digital, todo mundo perdeu a noção de realidade ou se tornou atleta. não existe ‘ser um corredor mediano’. considerando que as estatísticas mostram que só 52% da população brasileira pratica uma atividade física regularmente e desses 52%, 6% pratica a corrida e 25% realizam a caminhada (segundo o datafolha), caminhar ou correr regularmente já é estar acima da média. ‘com esse pace não dá para dizer que está correndo’. você por acaso sabe as condições dessa pessoa antes de falar merda na internet? falando por mim, com o meu joelho você não correria nem nesse pace.
sociedade paliativa e de desempenho
o que eu estou dizendo é: pegamos coisas simples e transformamos em entregas. é o fim da picada ter que entregar uma performance incrível até no lazer. nada contra metas pessoais, querer evoluir. tudo contra pular fases e justificar com ‘quem quer, consegue’. e você quer por que mesmo? quais suas motivações pessoais, seus valores? já ouviram falar no básico que funciona? talvez seja bom voltar a ele.
de onde vem essa cobrança toda? eu entendo porque um influenciador corre 10km agora e 21km daqui 6 meses: ele precisa de um desafio novo para incluir na sua linha editorial. ele precisa gravar a jornada de herói dele, se não ele perde a graça e a gente não consome o conteúdo. mas as pessoas comuns replicando essa cobrança de evolução dos outros e de si mesmas, qual o motivo?
falando sobre corrida, o tanto de gente que eu já vi falando me empolguei, treinei demais, me lesionei e agora estou sem fazer nada. todo dia que eu saio para correr eu sei que estou indo para limpar a minha cabeça. não é estético, não é para ser a melhor do mundo, no máximo é para ser um pouco melhor que ontem e me sentir incrível e forte. foi depois de correr que eu consegui gostar da academia, percebendo que ninguém ali estava nem aí pra mim, só preocupados com seu próprio treino. foram coisas que me tiraram da minha bolhinha autocentrada de querer ser boa. sempre boa, sempre melhor. porque não é sobre isso.
eu tenho uma forte impressão que as pessoas não percebem que elas estão destruindo os próprios hobbies transformando em mais uma área para performance e entrega. tenta responder todas essas perguntas. se questione: a que te serve uma coisa que existe para completar sua rotina se você não coloca limites nela a ponto dela te consumir? com quem é essa competição toda?
eu tenho algumas respostas. coincidentemente, comecei a ler ‘sociedade paliativa’ que fala muito sobre a dor. não a dor física, a dor emocional. atualmente, parece que fugimos da dor emocional (da vulnerabilidade, se apaixonar, ser humano) e abraçamos a dor física na máxima do no pain no gain. o que gera uma desconexão gigantesca entre motivação e objetivos, praticamente como se preparar para correr 21km por meses não por ser um sonho pessoal que te faz feliz, mas porque seu corpo é uma máquina que realiza entregas e é só querer!
O sujeito do desempenho de hoje se distingue fundamentalmente do sujeito disciplinar. Ele também não é nenhum "trabalha-dor" no sentido de Jünger. Na sociedade do desempenho neoliberal, negatividades como mandatos, proibições ou punições dão lugar a positividades como motivação, auto-otimização ou autorrealização. Espaços disciplinares são substituídos por zonas de bem-estar. A dor perde toda relação com o poder e com a dominação. Ela é des-politizada em uma circunstância médica. Seja feliz é a nova fórmula da dominação. A positividade da felicidade reprime a negatividade da dor. Como capital positivo, a felicidade deve garantir uma capacidade para o desempenho ininterrupta. Automotivação e auto-otimização fazem o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação se exerce sem nenhum grande esforço. O submetido nem sequer tem consciência de sua submissão. Ele se supõe livre. Sem qualquer coação estranha, ele explora a si mesmo, crente de que, desse modo, ele se concretiza. A liberdade não é reprimida, mas explorada. Seja livre produz uma coação que é mais dominante do que seja obediente (livro: Sociedade Paliativa, Byung-Chul Han)
como disse o Byung-Chul Han, falta ao capitalismo a narrativa da vida boa
tem espaço para a felicidade quando até o lazer vira competição? tô vendo você só ir na academia para vencer os amiguinhos no gymrats.
A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente impermanente, pois a vida é reduzida a um processo biológico que deve ser otimizado. Ela perde toda dimensão metafísica. O self-tracking evolui em um culto. A hipocondria digital, a permanente autome dição com apps de saúde e fitness degradam a vida a uma função. A vida é despida de toda narrativa promotora de sentido. Ela não é mais o narrável (Erzählbare], mas o mensurável [Messbare] e o contável Zählbare). A vida se torna nua, sim, obscena. Nada promete permanência. Desvanecem inteiramente também todos aqueles símbolos, narrativas ou rituais que fariam a vida ser mais do que um mero sobreviver (livro: Sociedade Paliativa, Byung-Chul Han)
às vezes eu me pego novamente caindo no papinho de projeto de autoaperfeiçoamento constante, comoditização de todas minhas qualidades e hiper produtividade e questiono até que ponto meu cérebro foi bem treinadinho para a sociedade do desempenho e não sei descansar, preciso de um descanso produtivo - colocar roupa na máquina kkkk - e não consigo assimilar que me sinto culpada por não estar fazendo tudo o que eu poderia.
quando eu vejo, eu estou só vivendo os dias sem parar para pensar. para mim, o-que-tem-que-ser-feito-todo-dia se divide em três categorias: básico para sobrevivência, básico para ser produtiva e o extra, para ser feliz, realizada, etc. é a mesma ideia da teoria do terceiro lugar. a gente tem que se dar o lugar de descanso e de prazer, sem nenhuma meta absurda. tem que cuidar da saúde pela saúde, não pela estética. são muitas distorções, entender o que é viver bem às vezes parece confuso. mas, no final do dia, não acho que seja sobre só ficar feliz quando se encontrar esgotado no final do dia.
espero que faça sentido pra vcs s2
nossa Maju, que texto incrível. além de todos os pontos que você trouxe, com os quais, concordo muito, ainda tem o ponto da comercialização dos hobbies, para correr, não basta querer e ter um corpo, precisa do óculos, do relógio, do short para usar sem calcinha; e isso se reproduz em todos os “hobbies” que as redes sociais e o capitalismo nos vende.
eu recentemente mudei de relógio, o que me dá um sabor agridoce, ao mesmo tempo que gosto de ter a facilidade de observar meus batimentos, lembrar de levantar, saber quantos dias não me exercitei de forma mais automática, fico com um rancinho de pensar que estou sendo controlada por um dispositivo eletrônico, ao ponto de precisar dele pra acordar, levantar, beber água.
Que texto necessário! Obrigada!
Essa produtividade dos hobbies precisam mesmo parar. Precisamos de espaço e tempo para fazer coisas não vendáveis e metrificáveis nessa sociedade.