#21 como colocar a cabeça no travesseiro e dormir sabendo que tudo o que eu já postei online está alimentando sistemas de IA?
IA e arte
obs: os acadêmicos que me perdoem, uso a abnt como me convém ss2
já pensou você, em um belo dia, abrir um app aleatório e ver seu rosto lá? pois é, esse tipo de coisa já acontece. a tainá deixou a bárbara torres mencionar sua história no instagram dela, nesse reels aqui.
tenho sentimentos muito controversos sobre a minha pegada digital. às vezes acho que a solução é excluir tudo (já excluí oficialmente metade das minhas contas), mas também acho que, bem, fodasse, já que é impossível excluir tudo porque quando a gente nem cogitava um problema futuro chamado ‘tudo o que você já postou em um perfil/site público um dia ser usado para alimentar uma LLM1’, ninguém pensava muito sobre o que postar, o que não postar. agora já está tudo lá.
agora, eu, com 23 anos, formada em direito e com interesse na área de inteligência artificial/privacidade/redes sociais e afins penso no que eu posto ou não. eu com 16 anos posso garantir que tinha muito juízo de valor sobre a matéria. também posso garantir que as crianças de 14 anos que são mini influenciadoras não tem ciência de que seus vídeos são eternos. ou que os tios do zap se importam quando sobem posts no facebook.
ou, se quiserem ir mais além, se atentando ao fato de que nessa brincadeira toda não é só sobre os dados que fornecemos e são utilizados sem autorização, mas ao fato de que todo o sistema e a lógica dos sistemas de redes sociais se alimentam do nosso trabalho, fica como indicação a edição ‘você é uma commodity?’ da bia.
o que me incomoda não é nem o fato de saber que juridicamente é muito difícil ganhar uma indenização por uso indevido dos meus dados e da minha imagem, mas de saber que podem existir casos de uso indevido que eu nunca vou tomar conhecimento. se bem que às vezes é melhor morrer sem saber mesmo.
IA e arte
existe uma coisa que me assusta mais do que a possibilidade do meu rosto aparecer em um app. quando penso que o que eu escrevo aqui pode estar ensinando uma máquina a escrever da mesma forma que eu, que a coisa que mais faz com que eu me sinta eu mesma pode ser replicada sem que eu receba 1 centavo - e sem a minha autorização prévia, claro - fico cinco minutinhos em silêncio.
nada como pegar algo que é essencialmente humano, a criação artística, e tratar como algo banal. lembrando que existe uma coisa chamada design algorítmico, um algoritmo é uma criação humana que faz o que é programado para fazer. ele só consegue trabalhar com base no que ele é alimentado e na função para a qual foi criado - aqui surgem questões como os chamados vieses algorítmicos, que são altamente problemáticos quando pensamos em IA sendo aplicada no setor público, por exemplo: sistemas de reconhecimento facial em câmeras públicas que detectam sujeitos foragidos - só que esse sistema foi alimentado só com imagens de homens brancos e, consequentemente, sua eficácia é prejudicada com relação a outras raças.
enfim, voltando para o assunto de hoje! kkkk
entre tudo o que pode ser criado no mundo da arte (e existem instalações e obras incríveis que só existem por causa do desenvolvimento tecnológico), os desenvolvedores escolhem criar sistemas se baseiam em obras de arte que já existem e ‘replicam estilos’ (para não dizer: plagiam artistas).
eu, pessoa física, mãe de filho pequeno (newsletter com 3.5k de subscritos), que escrevo por hobby (por enquanto), já me sinto altamente ofendida pela hipótese de ser copiada. imagina como se sentem grandes nomes que estão vivos, criando e sabendo que logo menos logo mais um sistema de IA pode replicar seu trabalho. é a epítome da desvalorização da arte.
vale mencionar que existe a corrente que entende a IA como um aluno, então ao alimentá-la com textos e obras ela aprenderia e criaria algo novo. mas ela não criaria uma obra, nos termos da lei de direito autoral brasileira.
isso porque, em termos técnicos, quando a gente estuda sobre direito autoral temos que entender que a (i) originalidade é um requisito para uma produção se enquadrar em uma obra e ser protegida pela lei de direito autoral brasileira. apesar de nada ser 100% original no sentido de ineditismo - quem criaria algo do zero em pleno 2025? - , ainda é necessária originalidade se não na matéria, da forma como ela é tratada, na abordagem e (ii) quem cria é (salvo raras exceções) um ser humano, uma pessoa física2 - não estou inventando, está na lei - que pega suas referências pessoais e cria algo.
assim, para mim é difícil assimilar que um LLM seja considerado um aluno porque (i) falta o espírito criativo, a inspiração que vem de uma pessoa física e (ii) é difícil acreditar que a intenção dos designers de LLM seja produzir algo novo. na prática, as pessoas ficam sedentas pelo poder criar um rembrandt3 ou uma sinfonia de beethoven ou um dom casmurro.
e, ainda que os LLM sejam alunos e/ou produzam obras por si próprias, como se justifica exatamente os dados serem usados sem autorização prévia a não ser o descaso com os titulares? não vale falar em ‘fair use’ que justifica qualquer ação com base no avanço tecnológico4. que espécie de avanço seria esse, no campo das artes? a arte deveria emancipar as pessoas.
chegamos em um ponto que falar em reprodutibilidade das obras de arte nos termos da técnica, entendendo que não existe mais uma identidade única da obra, não é suficiente (Benjamin, 2028). não se trata de inovações como a fotografia e o cinema, cujos suportes permitem que a reprodutibilidade obra e consequentemente seu alcance global. ao meu ver, sistemas como LLM permitem que até a aura, atributo que pode ser entendido como 'a capacidade de ‘transposição para a esfera da natureza de um fenômeno que se dá entre as pessoas da sociedade’ (a mensagem, aquele isntante que o artista capta na sua obra) possa ser reproduzida a depender da extensão das informações que alimentam a IA responsável pela criação.
me dói o coração ver o hayao miyazaki reagindo ao filtro que replica o estilo do studio ghibil. é de uma insensibilidade gigantesca. replicar o estilo de artistas que não estão mais aqui é uma coisa. é assustador, mas é uma coisa. replicar o estilo de escritores, artistas plásticos, replicar a voz de cantores que estão vivos, criando - aí é maluquice.
solução? até temos. difícil é fazer acontecer.
para Golding (apud Alves, 2024, p. 13), a chave para encontrar um equilíbrio que permita que o público tenha acesso (ao produto das IAs) está em atribuir uma compensação e o pegar o consentimento do autor para o uso das palavras.
para mim essa visão se sobrepõe a qualquer outra, como a de que ‘limitar os pesquisadores a treinar IA apenas com obras de domínio público restringiria o escopo das investigações possíveis usando ferramentas de IA, deixando de fora estudos sobre história contemporânea, cultura e sociedade’ (Klosek apud Alves, 2024).
a gente precisava parar de diminuir problemas porque existem problemas maiores, por exemplo o tarifaço do trump, uma possível recessão, o preço do ovo. porque, talvez, tudo isso seja consequência da mesma coisa: uma nova fase do capitalismo, com uma concentração de capital ainda maior do que antes, uma pós-pós-modernidade em que o mundo digital parece mais real do que o real e ninguém tem senso de prioridade, só senso de urgência. a arte é um reflexo do social. para Benjamin (e eu concordo), ela é política. nada diz mais sobre a política atual do que passar por cima de tantos artistas da forma como está acontecendo hoje.
Seguem refs principais para ninguém achar que estou inventando:
ALVES, Vitor Habib Lantyer de Mello. A Inteligência Artificial Generativa e Diretio Autoral: Investingando os Limites do Uso Justo na Era da Tecnologia. 2024. Revista de Direito, Inovação, Propriedade Intelectual e Concorrência. Disponível em: Acesso em: 08 abr. 2025.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
CHIRRU, Lucas. Inteligência Artificial e o Direito Autoral: o Domínio Público em Perspectiva.
Resumos das Minhas Aulas de Direito Autoral da Faculdade, 2023.
oi gente, quem gostou do novo formato mais acadêmico, por favor me conte! quem odiar o juridiquês me conte também. mas aviso desde já que só tenho a intenção de falar em termos jurídicos quando um tema interessante aparecer, o que não é sempre.
enfim, obrigada por lerem até aqui! beijos s2
LLM é a abreviação de ‘large language models’, que ‘são uma forma de Inteligência Artificial generativa, treinadas em enormes quantidades de dados textuais, como livros, sites, artigos, vídeos e textos, elas utilizam técnicas de aprendizado profundo, como redes neurais, para gerar conteúdo, seja texto, vídeo, imagem ou áudio(Feuerriegel et al., 2024; Hacker, Engel, & Mauer apud Alves)
Lei de Direito Autoral, Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.
Sobre isso: https://www.nextrembrandt.com/.
Disclaimer: o fair use não está previsto na nossa legislação e doutrina. Ele é amplamente utilizado nos EUA, que tem uma postura totalmente diferente da do BR com relação ao direito autoral. Aqui, a proteção é ao autor; lá, à obra (sistema de copyright). E tudo bem, são sistemas diferentes. Claro que é fácil ter uma opinião negativa sobre o fair use aqui de casa, mas reconheço que é uma justificativa válida, não é a toa que a aplicação ou não do fair use é analisada caso a caso por lá.
Em breve resumo, são 4 os requisitos básicos trazidos, mencionados em Alves (p. 4): (1) o caráter transformador uso, (2) a natureza da obra protegida por direitos autorais - obras mais factuais são menos propensas a favorecer o uso justo do que obras criativas, fictícias, (3) a quantidade e substancialidade da parte utilizada em relação à obra protegida, sendo que uma parte menor é mais propensa a configurar uso justo e (4) o efeito do uso sobre o valor de mercado ou potencial da obra protegida por direitos autorais, no sentido de que se esse uso desvalorizou a obra original, é menos propenso a ser considerado um uso justo.
Você foi extremamente completa dessa forma que vc apresentou!! amei amei amei seu texto
gostei muito desse formato! tenho lido bastante sobre IA (principalmente no contexto da arte) e essa edição agregou demais <3