#14 e se parássemos de tirar as mesmas fotos das mesmas coisas?
sobre uniformização do olhar e midiaficação do dia a dia (falando mais mal do instagram do que de costume)
meus posts em que falo muito mal de redes sociais são sempre os que furam a bolha. e nenhum deles é muito diferente do que eu escrevo nas edições, eu acho. comentários sobre ‘eu consigo administrar minhas redes sociais e me sentir bem nelas’ me deixam morta de inveja porque eu sempre tenho que tomar medidas drásticas para o relacionamento eu x redes sociais dar certo por aqui.
mas, porém, no entanto, queria mencionar que apesar de parecer que falar mal de redes sociais está na minha agenda por hobby e eu sou só uma pessimista que leu muita distopia (a segunda parte não é mentira), é um assunto de interesse para mim indo além de questões pessoais como comparação, autoestima etc. os dois artigos que publiquei na graduação e meu tcc foram sobre internet (responsabilidade civil dos influenciadores digitais, direito à privacidade e proteção de dados no capitalismo de vigilância e a regulação de tecnologias disruptivas no brasil, mais especificamente).
eu não me vejo, hoje, escrevendo academicamente na área jurídica - a filosofia, sociologia, psicologia da coisa me interessam mais. prefiro ler foucault, ativar as notificações do g1 e da cnn, receber essa notificação enquanto eu escrevo, ter medo de descobrir qual xingamento vai ser liberado, pensar em nós do zamiatin. ler a sociedade do cansaço de novo. achar indicações de livros melhores que a sociedade do cansaço e ler eles também. é sério. estou devorando a lista de indicações da clara browne.
escolhas individuais são muito legais, mas não necessariamente mudam o sistema. EU consigo administrar, não faz mal para MIM. bom, traçando o pior dos cenários: continuam sendo plataformas com anúncios não sinalizados, com publicidade infantil, com crianças de expondo a vida (com supervisão, aprovação e exploração monetária dos pais, em alguns casos), com um fluxo de informações muito maior do que o cérebro é capaz de processar no período em que está online, com publicações que se são longas não performam mais - ou seja, um monte de conteúdo mastigado (short-form) que incentivam o consumismo, promovem a desatenção e dificuldade de concentração, alteram a química dos cérebro, diminuem o nível de empatia, que dessensibilizam as pessoas frente a notícias terríveis.
quando eu digo que eu adoraria que as redes sociais desaparecessem, estou falando sério. não sentiria falta. amaria ter que voltar a encontrar pessoas pessoalmente e tirar fotos para revelar, não para os stories. mas elas não vão desaparecer. enquanto isso, vou administrar tudo isso de um jeito que seja bom para mim. e envolve pensar muito criticamente sobre.
não tem como sentar e achar normal o cara do twitter falar que não vai aceitar nenhuma lei regulamentando a plataforma dele (sugestão de newsletter com mais detalhes aqui, também de autoria da clara browne). como se, só por ser uma empresa privada que existe no espaço virtual, ele pudesse escolher se quer ou não que a lei se aplique a ela. a internet não é terra sem lei. ela pode ser imaterial, mas é um espaço em que para a surpresa de muitos a lei ainda se aplica! se aplica, tirando o fato de algumas redes sociais e empresas se tornarem tão influentes que a lei até perde força, não tem como mudar o sistema replicando o sistema. e me frustro muito porque, hoje, ter um perfil no instagram é sinônimo de existir.
de todo modo, sou muito grata pela forma como todas edições da newsletter são recebidas aqui, especialmente porque a maioria delas teve um tom muito pessoal, em que falei de experiências e sentimentos meus. vocês não sabem a surpresa que eu senti quando publiquei a primeira edição em que falei sobre o quão problemático é meu relacionamento com o instagram e várias pessoas compartilharam porque se sentiram da mesma forma.

tá, qual o problema da vez, então?
as redes sociais serem um problema é algo de conhecimento geral, inclusive a tendência do mês é o detox digital. o porquê de ser um problema varia, mas a ideia no geral é tomar muito tempo e incentivar o consumo desenfreado de bens. a minha leitura é mais paranoica e crítica.
e (hoje) eu não vou falar sobre privacidade. também não vou falar sobre meu impulso de achar que para as coisas mudarem, preciso jout joutizar e tomar medidas extremas. já tomei medidas extremas, estou pronta para flexibilizá-las e entender o que me incomoda tanto. começando focando no no consumo de redes sociais voltadas para o compartilhamento de imagens (no meu caso, instagram e pinterest).
não consigo dizer se isso é claro para todas as outras pessoas como é para mim: as imagens são uma forma de discurso e constroem uma narrativa. esse processo é intencional e vem da escolha de quem está se expressando.
entendo mais ou menos assim: um post é uma mensagem. essa mensagem é passada da forma como o interlocutor escolhe. e aí é um processo como qualquer mensagem: escolhe-se como falar, com quem se quer falar, quais palavras, quais imagens e como isso fala sobre o interlocutor em si.
dentro das redes sociais, as imagens (incluindo os memes) compõem a estética de um grupo. desde o bolsonarismo, com os posts no facebook com fontes que parecem saídas do word de 2003, às clean girls com pijamas claros e garrafas stanley ou manu cits com roupa de academia e uma bold na mão. é possível ver uma foto de um influenciador e identificar o nicho dele. mas não só eles. pessoas físicas, pessoas comuns, são incentivadas a registrar tudo. e a forma como esse registro é feito e compartilhado, também se encaixa em imagéticas específicas.
vai me dizer que você não consegue dizer que uma pessoa heterossexual é recém solteira só pelos stories de frases bíblicas ou fotos de drinks tiradas de um ângulo esquisito com flash? ou nunca viu pelo menos três stories de um café com um widget de horário em um dia, de perfis de pessoas físicas empreendedoras com síndrome da boca rosa?
no registrar tudo, na midiaficação do dia a dia, é como se houvesse uma agenda de publicação a ser cumprida, não como se as pessoas pensassem individualmente no que e como querem comunicar. parece que todo mundo quer fazer a mesma coisa - geralmente, replicar a imagética do influenciador modelo na área.
o que é uma tristeza, porque a grande maioria dos posts de influenciadores vem de produto de uma cuidadosa curadoria que envolve: escolher quais momentos se quer registrar, criar esses momentos selecionando cenário, figurino e elementos físicos, o registro em si por meio de um vídeo, a edição dos takes do vídeo, inserir um texto no vídeo e a legenda do post, usando uma seleção de palavras que ao mesmo tempo seja provocadora e gere conexão com quem está lendo e que hankeie bem em um público específico e em um tom de naturalidade, de woke up like this.
existe um processo por trás de um post. mas, contraditoriamente, dizemos ‘agora uma foto espontânea’ e posamos para ela. a blogueira que se grava acordando levantou e colocou o tripé para fingir estar acordando. nada disso é vida real, nada é natural - e quem ganha algo fingindo que é?
parece que, aqui estou eu, novamente, falando sobre autenticidade. e eu estou. mas queria mencionar também essa questão do exibicionismo, de estar o tempo todo postando algo previsível a ponto de fotos e vídeos perderem o sentido ganhando um ar de banalidade, como se não houvesse uma série de processos mentais por trás. além de ser muito, é tudo muito igual e serve a quê, especificamente?
pouquíssimos posts permitem uma leitura mais profunda que aquelas agendas de publicação que eu mencionei. tudo é previsível, pouco informativo e muito nichado. uma frase tipo ‘se você me ver correndo 04 da manhã saiba que é onde quero estar’ em uma semana se torna 20.000 vídeos com takes de meninas sorrindo felizes com uma água de coco na mão.
sem querer soar como aquele cara paranoico de olhos estalados e cabelo espetado que sempre aparece em um episódio de séries de investigação criminal, comicamente acreditando que está sendo observado (vigiado) o tempo todo. só que eu não só estou sendo vigiada e profilada o tempo todo, como estou eu mesma fornecendo material para a vigilância e querendo ser um perfil que se enquadre em x. e não tem capacete de papel alumínio que seja capaz de parar esse processo.
quando eu consumo muito conteúdo online, eu não sei mais se estou comunicando o que quero ou o que fui influenciada a comunicar. perco um pouco da noção do que sou eu, se estou fazendo por mim ou pelos outros. vou cortando as arestas para caber em uma estética - e mesmo que eu chegue, não consigo reconhecer porque meu olhar está totalmente viciado. quando eu falo que redes sociais me dão ansiedade, não é só por questões de comparação. é que essa demanda por quantidade e não por qualidade mata a criatividade (e o senso de eu) de qualquer um.
conclusão
não vou dizer que a solução é excluir todas as redes sociais e fazer um detox. uma dieta restritiva de consumo de conteúdo não é a solução a longo prazo, embora uma reeducação no consumo digital DE TODAS AS PESSOAS DO MUNDO possa ser. a lita escreveu sobre práticas que ela adotou para ser menos cronicamente online, fica como sugestão de leitura.
também não vou dizer que a grande quantidade de conteúdo é o problema. posso ver 5 vídeos seguidos no youtube e não sentir meu cérebro escorrendo pelo meu nariz como quando passo o mesmo tempo assistindo a reels. mas acredito que a qualidade seja - e o ambiente também.
a beatriz guarezi escreveu sobre o instagram ter acabado e qual o histórico teria levado a isso. a hipótese dela se relaciona com as plataformas terem se tornado meios de anunciar produtos. é fato que o instagram hoje se parece mais com um marketplace do que com o que ele era no início, quando o objetivo era postar fotos artísticas legais. também o twitter já foi um lugar legal, mais alguém lembra? eu era fã daquela época good vibes maktub.
por fim, fica como indicação o livro políticas da imagem: vigilância e assistência na dadosfera da gisele beiguelman, que fala sobre tudo o que mencionei e muito mais.
para encerrar, deixo aqui duas considerações da autora que conversam com tudo o que mencionei:
(…) a hipótese de que exista um estado de excesso de informação apenas calibra uma aspiração conservadora, que pressupõe ser necessária uma hierarquia de poder intelectual, para filtrar e entregar o conteúdo. O problema, portanto, não é descobrir como limitar a quantidade de informações, mas sim como ampliar, cada vez mais, o volume qualitativo do conteúdo midiático e cultural que circula na internet e fora dela ) (p. 41).
(…) estamos vivendo a paradoxal situação de potencialmente criar a mais rica e plural cultura visual da história, pela democratização dos meios, e mergulhar no limbo da uniformização do olhar’ (p. 141).
that’s it, guys!
espero que gostem da temática e não discordem de tudo o que eu falei! kkkk beijos
Gosto mto do seu jeito de pensar na coisa justamente porque não tem cara daqueles posts padronizados “fiz 1 mês de detox digital e veja só no que deu”.